Reflexões de um médico sobre o aborto e o direito de viver

fetoComo sempre – mas, hoje, muito mais do que antes -, a consciência atual, despertada pela insensibilidade e pela indiferença do mundo tecnicista, começa, pouco a pouco, a se reencontrar com a mais primária e indeclinável de suas normas: o respeito pela vida humana. Até mesmo nos momentos mais graves, quando tudo parece perdido, dadas as condições mais excepcionais e precárias como nos conflitos internacionais, na hora em que o direito da força se instala, negando o próprio Direito, e quando tudo é paradoxal e estranho -, ainda assim o bem da vida é de tal grandeza que a intuição humana tenta protegê-lo contra a insânia coletiva, criando-se regras de conduta que impeçam a prática de crueldades inúteis e degradantes.

Quando a paz passa a ser apenas um momento entre dois tumultos, o homem – o Cristo da sociedade de hoje – tenta encontrar nos céus do amanhã uma aurora de salvação. A ciência, de forma desesperada, convoca os cientistas de todos os climas a se debruçarem sobre as mesas de seus laboratórios, na procura alucinada dos meios salvadores da vida. Nas mesas das conversações internacionais, mesmo entre intrigas e astúcias, os líderes do mundo inteiro procuram a fórmula mágica da concórdia, evitando, assim, o cataclismo universal.

Mesmo assim, e, mais ainda, na crista da violência que se instituiu em nosso país nesses últimos anos, levanta-se uma nova ordem: a da legalização do aborto, ou, eufemisticamente, a sua descriminalização. Tal fato nada mais revela senão a reverência ao abuso, o aplauso ao crime legalizado e a consagração à intolerância contra seres indefesos, cujo fim é a injustificável discriminação contra o concepto e as manobras sub-reptícias do controle da natalidade, como forma de preconceito do patriarcado industrial, do machismo científico e do colonialismo racial.

Quais as verdadeiras razões desse raciocínio tão implacável? Supõem os defensores do aborto que seria uma maneira radical de diminuir o número de abortamentos clandestinos e sua morbimortalidade. É argumento pouco consistente alguém simplesmente justificar um aborto porque a mulher não esperava uma gravidez ou porque admite uma remota probabilidade de malformação genética, quando venha se manifestar um possível gene autossômico recessivo.

O que assusta é imaginar que a gestante que não possa ou não tenha oportunidade de realizar exames pré-natais, e, portanto, direito ao aborto, não seja contemplada mais adiante com urna legislação que permita praticar impunemente o infanticídio.

Aceitar-se a legalização do aborto, projetando na realidade brasileira uma cifra aproximada de abortamentos criminosos praticados anualmente em torno de dois a três milhões -, ou pelo fato de ser essa prática contínua e progressiva, nos leva a graves e perversas contradições: Primeira, nada mais discutível que tais estatísticas sempre supra ou subestimadas ao sabor de cada paixão e, por isso mesmo, desconhecidas; depois, seria o caso, com todo respeito, de normatizar também o seqüestro, que é uma situação que se repete de maneira continuada e assustadora.

Após a legalização do aborto, será que surgiriam os defensores do infanticídio oficial do segundo ou do terceiro filho dos “indisciplinados sexuais”? Pelo menos, isso não seria nada original, pois já se utilizou de tais recursos, em época não muito distante, numa pretensa e cavilosa “política eugenista”. Admite-se, no Brasil, uma mortalidade materna em torno de. 4,5 por 100 mil nascimentos vivos, em abortos provocados, o que representa um fato lamentável e muito grave. No entanto, somente em João Pessoa morrem por dia cerca de doze crianças, entre 0 e 5 anos, por doenças tratáveis e evitáveis, agravadas pela fome.. E não se conhece nenhum movimento organizado que, pelo menos, manifeste, sobre isso, sua indignação.

Admitimos, ainda, que nos países que adotam o aborto livre, apenas uma pequena parcela dos médicos defensores e praticantes do abortamento seja consciente e honesta. A maioria, bem significativa, o faz por interesses meramente financeiros.

Ninguém se engane que o aborto oficial vai substituir o aborto criminoso. Ao contrário, vai aumentar. Ele continuará a ser feito por meio secreto e não controlado, pois a clandestinidade é cúmplice do anonimato e não exige explicações.

Podemos até admitir a discussão ampla do problema, convocando-se todos os segmentos organizados da sociedade para esse debate com vista a uma possível alteração dos códigos. Tudo bem. O que não se pode é instigar ou aplaudir, por razões ditas “humanitárias” e “ideológicas”, o simples desrespeito à lei e a pregação à desobediência civil. Uma coisa deve ficar bem clara: indiscutível é o direito inalienável de existir e de viver; outro, de limite discutível, é o direito de alguém dispor incondicionalmente da vida alheia.

Outra coisa: legalizado-se o aborto, estariam todos os obstetras disponíveis à prática abortiva? Acredito que não. Ninguém pode ser violentado na sua consciência. Ainda mais: os professores de obstetrícia estariam no dever de colocar no currículo de ensino de sua especialidade, não apenas os conhecimentos na assistência à gestante e ao feto, mas, também, conhecimentos de como matar com mais eficiência e destreza o embrião humano? E possível conciliar uma medicina que cura com uma medicina que mata? Onde levantaríamos o limite de dispor de uma existência? Ao que nos consta, a medicina sempre contou com o mais alto respeito humano pelo irrestrito senso de proteção à vida do homem e não como instrumento de destruição. Fora disso, é distorcer e aviltar a sua prática, a qual deve inclinar-se sempre ao bem do homem e da humanidade, prevenindo doenças, tratando dos enfermos e minorando os sofrimentos, sem restrições ou sem discriminações de qualquer natureza.

A oficialização do aborto nada resolve. Ele não é causa, mas conseqüência. Não é um fato isolado. Ë um fenômeno estritamente de ordem social, e como tal tem sua solução com propostas políticas bem articuladas, pois ele sempre teve na sua origem ou nas suas conseqüências uma motivação de caráter social. A primeira coisa que se deve fazer para se minimizar o aborto provocado é acudir os grupos desassistidos, por meio do esvaziamento dos vergonhosos bolsões de miséria, permitindo-lhes o acesso às suas necessidades primárias e imediatas: casa, comida, educação, saneamento básico e assistência médica. E necessário também fazer nascer a consciência sanitária na população, orientando-a para os movimentos organizados de saúde, na luta com os trabalhadores rurais e urbanos por melhores condições de vida e de saúde, além de uma política social justa e capaz de favorecer as suas necessidades mais elementares, no combate permanente à iniqüidade e à injustiça.

Por Dr. Genival de França/ABC do Corpo Salutar via Aleteia